Escritos de Rafael Perfeito

domingo, 14 de agosto de 2011

Hipocondríaco



O espelho não sabe.
O médico auscultou e não detectou. Disse: é psicossomático!
O polígrafo não percebeu: menti descaradamente: não te amo, não te amo e não te amo! Os fios pregados em meu peito, em meu saco, em mim todo não traduziram nenhum indício de falsidade.
No escrutínio de minha retina, na análise científica de minha íris, bulhufas.
Finalmente Pai João me deu um passe e nada teve a declarar.
O cachorro, daqueles que farejam até câncer, pulou de alegria da mesma maneira quando cheguei em casa, como se hoje fosse ontem, como se hoje fosse um ano atrás.


Mas não é.


Eu mudei. Eu sei disso.
Eu sei que estou doente.


Sinto que minha diástole não atinge a expansão de outrora, milimetricamente encolhida, apequenando meus sonhos. A sístole também, aperta um pouco mais, quase imperceptível constrição dos meus sentidos.


É como se minha voz interior estivesse com calo nas cordas vocais, vibrando menos para não doer aos ouvidos, agora também ligeiramente mais surdos.


O tato? Tenho certeza absoluta de que as correntes elétricas que saem da ponta de meus dedos chegam ao meu córtex cerebral primário com milissegundos de atraso. A lembrança da sua pele viaja mais rápido,  deixando áspero tudo o que toco.


Me corto para ver se meu sangue está vermelho. É, meus olhos ainda percebem essa cor...


Meu coração é que ficou daltônico.
Minha alma é que está com AIDS.

6 comentários:

  1. Oi Rafael,
    Difícil traduzir tão bem um sentimento. Pela minha leituro deduzi que esta crise hipocondríaca foi causada por um mal de amor... rs adorei o texto.

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  2. Olha, só posso dizer uma coisa: foda! Tive q ler duas vezes e achei ainda melhor na segunda. Pede ainda uma terceira leitura e, quem sabe, uma quarta, quinta...
    Sei q não é poesia, mas alguma coisa me lembrou Drummond.
    Abçs

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  3. Isso é uma crônica com pitadas de lirismo, muito bem construído.
    Abç,

    Tamar

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  4. A sistóle é necessária para haver diástole...
    As vezes temos que contrair, nos contrariar para o sangue poder voltar a circular fluido, seguir as mudanças das marés.

    Prosa poética para explicar sentimentos é um bom meio para voltar a funcionar em tendencia atualizante.

    Ana Silva.

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  5. Em alguns momentos as coisas com as quais convivemos (digo tudo mesmo!), nos dizem, nos traduzem, nos escancaram os sentimentos mais íntimos como a nos dizer: enxerga a ti mesmo, transforma-te. Em outros o oposto. Não falam nada, tudo "normal". É como a nos dizer: és outro e aqui esperamos tua nova roupagem pra de novo retratar-te. Ah,inexorável transformação!

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Vocifere!