Escritos de Rafael Perfeito

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Burnout


São 18h30 de uma terça-feira. Suas mãos agarram firmemente a barra de apoio no teto do metrô. Equilibra-se como pode entre vários pulsos e corpos chacoalhantes. Sente a vista pesada, o corpo cansado. Pensa naquela rotina diária, pensa na cerveja no congelador e no que o aguarda em casa, à noite...




...acorda num sobressalto. Os joelhos dobrados fizeram com que o peso do corpo recaísse todo sobre as mãos agarradas em cima. O cotovelo quase acertara o rosto de gentil senhora a seu lado. Sem entender direito o que havia acontecido, percebe sorrisos nos cantos de várias bocas ao redor. Alguns abafavam o riso entre as mãos:


_ Deus!! Eu dormi em pé no metrô! - pensou enquanto olhava as olheiras negras no reflexo do vidro.


Isso nunca lhe havia acontecido antes. Estaria trabalhando demais? Dormindo de menos? Talvez fosse a idade... estava chegando aos 30. Burnout? Isso! Devia ser a síndrome de Burnout, aquele stress típico de professores.


Limpando a saliva que lhe escorria já pelo pescoço, pegou a bicicleta e desceu na estação de Águas Claras.


No breve caminho até sua casa pôs-se a relembrar seu dia. Mais um arrastado dia sem clímax, tão comum aos professores:


6 da manhã. Metrô. Escola 1. Cantar o hino nacional. Aplicar prova, recolher prova. Dar esporro no aluno dos hormônios em polvorosa. Sorrir para a mãe chata que deposita todos os problemas do filho asperger na sua conta.


Ônibus, chope com o pai num almoço de 30 minutos. Ônibus, escola 2. Exvai-se a tarde inteira...


Enfim, desfalecer no metrô. Aquele que se achava em boa forma havia dormido em pé no metrô! Havia encarado as próprias fundas olheiras no reflexo do vidro e pensara no que o aguardava, à noite, em seu quarto.


Chega em casa. Esquenta o óleo para um bife à milanesa ao mesmo tempo em que come feijão e arroz direto do pote da geladeira... escola 3.


Finalmente, as 11 da noite, volta para casa. Pega a cerveja gelada. Na cama o aguardam, juntinhas, duas de suas alunas, uma tocando a outra. São Alícia Kelly Andrade, 19 anos e Betina Roberta da Conceição Neres, 34. A primeira, morena, mais despojada, mostra a malemolência (neologismo?) de quem nunca precisou trabalhar. Tem traços finos e longilíneos. A segunda, uma empregada doméstica semianalfabeta, de traços grosseiros, gordinhos e decididos, mostra alguns de seus predicados.


Ao entrar no quarto, mineirinho come quieto, o professor exclama: “Nüü Senhora!”.
Sua expressão transtorna-se. Pega as duas que estão juntas em sua cama e violentamente as joga na escrivaninha. “É hoje!”. Avança para cima de Alícia Kelly e, após uma boa respirada, abre as primeiras páginas das mais de 300 provas que tem de corrigir.




9 comentários:

  1. Acho que se seguir o dia-a-dia desse professor devorador de provas, faz um livro interessante... ele pode migrar lentamente à loucura e fazer coisas surpreendentes no fim do livro...

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  2. Esse professor tem que dar um jeito de trabalhar menos... Ninguém merece chegar em casa cansado e ainda ter que encarar Alicia Kelys e Betinas, sem contar os Alexandres, Renatos...rs..
    Muito legal esse texto!!!

    Alê.

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  3. Rafael. Perfeito. Só descalabrando mesmo.
    Muuiittooo bom teu texto.
    Você é assim com teus alunos??? Feliz deles.
    Você é professor de literatura???? Se joga essa verve imaginativa nas aulas, estás com certeza formando bons leitores. No mínimo dando oportunidades.
    Brigadinha pela retribuição da visita. Já tinha imaginado que era teu sobrenome. Tinhas que ser professor. Nada fácil levar um sobrenome assim, tem que ter o físico atlético que mostras na foto. Hehe.
    Mas tudo bem, conheço um juiz cujo sobrenome é dos Prazeres.

    Eu não conheço a Austrália ainda. Meu filhote é que está lá. Quem sabe um dia visito. Tenho ficado bem impressionada com alguns escritores e coisas de lá.

    Bem, apareça sempre e seja bem vindo ao Gavinhas.
    Virei seguidora tua.
    Abraço
    Boa Páscoa
    Marie

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  4. E ai rapaz!

    Adorei a história.... Deu para sentir um pouco desse dia-a-dia de professor. O final, sensacional!

    Beijocas

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  5. corri solta percorrendo esses escritos de alta intensidade. essa mistura do ordinário com o que resvala das cenas cotidianas muito me encantou. voltarei com mais tempo, bjs

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  6. Muito bom!
    Xô, Burnout!
    Claro que trabalhar demais, ninguém merece.Saúde em primeiro lugar, até porque, precisamos(seus seguidores), desfrutar de maravilhas como essas que acabei de ler.
    Adorei!

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  7. E a cerveja no congelador...
    virou pedra, não foi?

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  8. precisu descobrir ondi é tua ksa....pra ti dar boa noite...te...proff

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  9. Meu Deus, como professora, me senti vivendo sua estória! Tirando a parte das Alícias e Betinas, que no meu caso eu colocaria Rafaels e Fernandos... o número de prova seria o mesmo! rs

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Vocifere!