Escritos de Rafael Perfeito

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Olhar Canino


Entrou naquele mar de sinucas conhecido como Área 51 uma menina de uns 18 anos, estourando. Era, teoricamente, a idade mínima permitida.

Olhei-a de baixo a cima. Sapatinho raso, preto, daqueles de bonequinhas japonesas, com brancas meias finas. A saia preta não mostrava muito, afinal seus quadris ainda não haviam adquirido nem a desenvoltura nem a amplitude daqueles de mulheres mais experientes. Acima do umbiguinho à mostra, uma blusa apertada, que lhe dava um ar ainda mais infantil, com certeza por causa da estampa: um cachorrinho de língua azul, com pidões olhinhos dentro de quadrados óculos vermelhos.

Comi-a com os olhos e, curiosamente, seus olhos procuraram os meus. Da linha de meu olhar de Humbert Humbert não mais saíram.

Tomei sua direção. A pouca idade não resistiria a um boêmio de plantão.
Olhos nos olhos (céus, seus olhos não desviavam!) percorri a distância que nos separava:

_Olá!

Demonstrando total surpresa, num rosto que mal reconheci, a menina, como se  me visse pela primeira vez, me deu as costas,  tremendo a boca com nojo e desprezo.
Com os pés no chão, percebi: não era ela quem me fitava!


Eram os bicos de seus seios, tal qual olhar de anjo em teto de igreja, a me perseguir por todos os cantos,  de dentro dos óculos quadrados de sua blusa, disfarçados de olhar canino!






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Referências: Lolita, Vladimir Nabokov

domingo, 14 de agosto de 2011

Hipocondríaco



O espelho não sabe.
O médico auscultou e não detectou. Disse: é psicossomático!
O polígrafo não percebeu: menti descaradamente: não te amo, não te amo e não te amo! Os fios pregados em meu peito, em meu saco, em mim todo não traduziram nenhum indício de falsidade.
No escrutínio de minha retina, na análise científica de minha íris, bulhufas.
Finalmente Pai João me deu um passe e nada teve a declarar.
O cachorro, daqueles que farejam até câncer, pulou de alegria da mesma maneira quando cheguei em casa, como se hoje fosse ontem, como se hoje fosse um ano atrás.


Mas não é.


Eu mudei. Eu sei disso.
Eu sei que estou doente.


Sinto que minha diástole não atinge a expansão de outrora, milimetricamente encolhida, apequenando meus sonhos. A sístole também, aperta um pouco mais, quase imperceptível constrição dos meus sentidos.


É como se minha voz interior estivesse com calo nas cordas vocais, vibrando menos para não doer aos ouvidos, agora também ligeiramente mais surdos.


O tato? Tenho certeza absoluta de que as correntes elétricas que saem da ponta de meus dedos chegam ao meu córtex cerebral primário com milissegundos de atraso. A lembrança da sua pele viaja mais rápido,  deixando áspero tudo o que toco.


Me corto para ver se meu sangue está vermelho. É, meus olhos ainda percebem essa cor...


Meu coração é que ficou daltônico.
Minha alma é que está com AIDS.