Escritos de Rafael Perfeito

segunda-feira, 23 de março de 2009

De machismos e exorcismos...



Não conseguindo se livrar da lembrança da ex namorada, Tomas adotou peculiar processo de exorcismo. Costumava, uma vez por dia, em hora não marcada e quase sempre imprópria, falar de sopetão, com a fronte séria e a mesma emoção:




_ Aquela vaca filha da puta!!!


Era médico. E era dos bons. Comunista, atendia pessoas comuns em Praga. Não só por ideologia, também o governo o obrigava.
Certa feita a paciente pálida emudeceu, quando, junto ao toque frio e quase atrevido do estetoscópio em seu seio, ouviu, pronunciado entre dentes cerrados, com a mesma emoção:


_ Aquela vaca filha da puta!!!


Solitário, parava de frente para o espelho, inteiramente nu. E após segundos de devaneios, sem saber o que fazia ali, percebia sua imagem a pronunciar, à sua total revelia, o olhar fixo ao seu e com a mesma emoção:


_ Aquela vaca filha da puta!!!


Fora esses pequenos momentos assustadores, mais para ele do que para quem ouvia, Tomas praticava a leveza de seu ser. Perdia-se no cruzar de pernas da paciente; ao dar o ombro amigo à conhecida sofrida; ao galantear o desfile da morena na faixa de pedestre.


Auscultando seu próprio coração, ficou feliz ao perceber, tranquilamente, que de uns tempos pra cá vinha sarando. Os momentos não eram mais impróprios, a emoção nem sempre a mesma. Mas quando via a pia suja de pratos, cervejas e restos de comida, não podia conter um comentário cheio de banzo e machismo:


_ Aquela vaca filha da puta!!!
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quarta-feira, 18 de março de 2009

Policiando sentimentos



Preparando provas no butiquim blues. A banda passando os sons. A cantora, cujos belos ombros largos camuflam o desafino, pede, grave, mais agudo no microfone.


Não me concentro no meu ofício. Viajo nos pensamentos. Fernando Pessoa, pessoificando Ricardo Reis, diz que a poesia é a polícia do sentimento. Exercício racional e labutoso de colocar ritmo, métrica e forma, rédeas no turbilhão da alma.
Longe de ser escritor, estou ficando experiente em domar as coisas que sinto.
Que sinto só... solidão.

terça-feira, 17 de março de 2009

Sobre excomunhões, paranóias e afins

O mês de março nos reservou um acontecimento que trouxe estupefação atrás de estupefação.


- Choque número 1: uma garota de 9 anos grávida.
- Choque número 2: uma garota de nove anos grávida de gêmeos, cujo pai seria o amiguinho da escola!
- Choque número 3: só podia ser o padrasto.
- Choque número 4: a Igreja Católica excomunga a família da menina e os médicos responsáveis pelo aborto legal da gestação da criança.



Qual a reação da sociedade? Lula lamentou o pensamento retrógrado, marxistas regozijaram seu ateísmo, um jornalista criou o seguinte blogue: Quero ser Excomungado.


Sinal dos tempos. E pensar que no século XV a assinatura do Papa, prevendo a excomunhão dos desobedientes, era o que garantia o respeito ao tratado de Tordesilhas.

Limites, além dos imaginários, não havia. Fronteiras, não havia. Guardas, muito menos. Somente a consciência impedia portugueses e espanhóis de trespassar o acordado.

Como dizia um famoso compositor baiano:


”Minha mãe me disse há tempo atrás
Onde você for Deus vai atrás
Deus vê sempre tudo que cê faz
Mas eu não via Deus
Achava assombração, mas...
Mas eu tinha medo!
Eu tinha medo!
Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro, com vergonha
Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo
Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro!”

O homem medieval devia ser um poço sem fim de paranóias. Se eu fosse psicólogo, voltava no tempo.

sábado, 7 de março de 2009

Mr Wong comparece à peça Mary Stewart



Antes de mais nada, apresento Mr. Wong, descrito por Mário Quintana:




O Estranho Caso de Mister Wong.
“Além do controlado Dr. Jekyll e do desrecalcado Mister Hyde, há também um chinês dentro de nós: Mister Wong. Nem bom, nem mau: gratuito. Entremos, por exemplo, neste teatro. Tomemos este camarote. Pois bem, enquanto o Dr. Jekyll, muito compenetrado, é todo ouvidos, e Mister Hyde arrisca um olho e a alma no decote da senhora vizinha, o nosso Mister Wong, descansadamente, põe-se a contar carecas na platéia… Outros exemplos? Procure-os o senhor em si mesmo, agora mesmo. Não perca tempo. Cultive o seu Mister Wong!” (Tirado de Quintana, Mário. "Sapato Florido" 1948).


Fui assistir, outro dia, à peça Mary Stewart. Júlia Lemmertz excelente, com seus pezinhos curvilíneos dominando o palco. E eis que surge o meu Mr. Wong.


No auge da cena onde à Mary Stewart é permitida breve saída das paredes onde encontrava-se trancafiada pela irmã, quando deleitava-se de prazer ao imaginar a Escócia ao norte e observava as taciturnas nuvens da Inglaterra, desperta em mim a personagem chinesa. Desviou meus olhos do palco e me fez escrutinar a platéia. Algumas cadeiras a meu lado percebi um sorriso comovido, comovente, maravilhoso. Não era bonito, mas espontâneo, puro, diferente. Quando subi os olhos da boca para vislumbrar todo o rosto dono daquele sorriso, percebi: a moça era cega.


Os olhos fechados estavam atentos a cada palavra, respiração e barulho vindos do palco. A face transtornada em vivo prazer. Ela parecia sentir a alma de Mary Stewart despertando de situação análoga, cega de tudo o que há de belo pelas paredes que a cerceavam há tanto tempo. Redescobrir as cores de um jardim, da natureza e, principalmente, do horizonte roxo que paira sobre as montanhas.


Dos decotes vistos por Mr. Hyde, da densa peça apresentada e absorvida por Dr. Jekyll, sobressaiu-se o que viu Mr. Wong. Ninguém naquela platéia sentiu tanto a apresentação quanto a moça cega. Ver pululando em cada parte de seu rosto as emoções que sentia com o breve momento de liberdade de Mary Stewart foi o ponto alto da noite.